Renata Coelho Marchezan / UNESP, Araraquara e Juscelino Pernambuco / UNIFRAN

Mil rosas roubadas de Silviano Santiago, em perspectiva bakhtiniana

 

Resumo
Desde seus primeiros textos e na maior parte de sua reflexão, o pensador M. Bakhtin ocupa-se da arte, da literatura. Em perspectiva filosófica, no entanto, o ato criador e o autor-criador na arte são considerados, por ele, em relação com a ética e o conhecimento, no domínio mais amplo da cultura. Ao mesmo tempo em que se distinguem, os três domínios constituem-se em permanente articulação. De modo semelhante, entendem-se os gêneros discursivos produzidos nesses diferentes domínios: pode-se distingui-los e nomeá-los, mas se reconhecem também suas estreitas ligações. É esse quadro da reflexão bakhtiniana que nos vem à mente quando tomamos como objeto de estudo Mil rosas roubadas, do escritor e crítico literário Silviano Santiago. No livro todo, acompanhamos a voz, de um eu narrador que rememora sua relação com um amigo querido: a circunstância em que o conheceu ainda na adolescência, o último encontro em que o visita em seu leito de morte, os afetos vivenciados, a empatia, os conflitos, a personalidade do amigo. O leitor não consegue imergir, por muito tempo, na história narrada. De quando em quando, é puxado à letra do texto, lembrado de sua condição de leitor, pelo narrador que problematiza a adequação de suas lembranças e de sua própria escrita. A voz em primeira pessoa propõe-se a escrever uma biografia do amigo, vê-se desviar em direção à autobiografia e, incansavelmente, segue, retorna, debate os rumos que percorre. Assim, à dramatização do eu em encontros e desencontros com o amigo, se junta o drama da escrita da memória, da confissão, da biografia, da autobiografia. Esses gêneros são problematizados por Bakhtin, em especial, por meio da relação estabelecida entre autor e herói: quando eles coincidem ou quando não há herói, não há acontecimento estético, mas, sim, acontecimento ético e cognitivo, respectivamente. E Mil rosas roubadas abre mesmo tais “flancos”. E mais: diferentes e numerosos elementos da história – principalmente, localidades e referências culturais – provocam o leitor a sobrepor à figura do narrador o próprio Silviano Santiago, e, entre os que conhecem melhor a biografia do escritor, a relacionar o amigo com Ezequiel Neves, jornalista musical e produtor. Em entrevistas a jornalistas, talvez aí ainda mais o crítico literário do que o romancista, Silviano Santiago agrega mais dois elementos à mistura de gêneros: prefere considerar Mil rosas roubadas um roman à clef, e/ou uma autoficção. O livro, que, certamente, se encontra nas estantes reservadas à literatura brasileira, é também um quase-ensaio sobre o ato criador, uma lição contemporânea de (des)orientação ao leitor, de adoção e recusa de gêneros discursivos, a mostrar que não há chão firme na literatura, mas, ainda assim, é o melhor que temos.