Dóris de Arruda C. da Cunha
 

Ponto de vista e representação do discurso outro no Portrait publicado no jornal Libération e Plural na revista Carta Capital[1]   

 

Dóris de Arruda C. da Cunha 

 

UFPE/UNICAP/CNPq 

 

No território de quase todo enunciado ocorrem uma tensa interação, uma luta da minha palavra com a palavra do outro, um processo de sua demarcação e da iluminação dialógica de uma pela outra” (Bakhtin, 2015: 150-151)  

 

  

         Esse trabalho analisa a relação do ponto de vista com o discurso outro, na constituição do perfil, gênero em que as dimensões metadiscursiva e do heterogêneo são importantes. Para tanto, construí um corpus composto de perfis publicados nas seções Portrait, publicado no jornal francês Libération, e Plural, na revista Carta Capital. Trata-se de um gênero da esfera jornalística sobre uma “personalidade” que pode ser mais ou menos célebre, mais ou menos anônima e que merece esse espaço na mídia. 

         A pesquisa parte da concepção dialógica de discurso hic et nunc e do seu sentido, a partir de outros discursos, considerando que todo objeto de discurso já foi “ressalvado, contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo, correntes” (Bakhtin, 2003:300). Ao mesmo tempo, considera a compreensão responsiva do destinatário, que determina a sua composição, as formas linguísticas e o estilo. Nessa perspectiva, o trabalho de interpretação volta-se para a inter-relação entre os discursos e especialmente para a posição do locutor ou escritor face aos discursos de outros, tendo em vista que não só os enunciados mantem relações dialógica e carregam os “ecos e ressonâncias de outros enunciados” mas ocupam uma “posição definida” correlacionada a outras posições. Para Bakhtin (2003: 297), “é impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições”. A relação com palavras dos outros está, portanto, intrinsecamente ligada ao ponto de vista (Cunha, 2015). 

         Embora ponto de vista não seja claramente definido por Bakhtin, a noção está presente na sua concepção de vida e de discurso. Nos seus escritos, a posição axiológica remete a um conjunto indissociável que engloba valores, afetos, tempo e espaço (cronótopo).  Esquematicamente, pode-se dizer que estamos sempre em face de pontos de vista, uma vez que estritamente falando não há fato puro e simples ou sentidos dissociados de afetos e valores. É do lugar único que ocupa o sujeito histórico com seus valores e afetos, que ele percebe e apreende alguns aspectos da realidade” múltipla, especialmente os pertinentes para ele. Daí a diversidade de formas de "perceber como" e de se posicionar, que podem ser revistas, corrigidas por um outro ou por nós mesmos na reflexão. “Ponto de vista” é definido aqui como modo de perceber, ver, interpretar e tomar posição de cada sujeito « enquanto tal » (« en tant que », François, 2015), constituído dialogicamente, inseparável do emotivo-volitivo, dos valores e dos sentidos. 

         O tratamento dado a outros discursos varia de acordo com os gêneros (Cunha, 2002, 2005, 2012, 2015). Authier-Revuz (2004: 50-51) cuja teorização sobre a representação do discurso outro situa-se no nível da língua reconhece: « o fato — da língua — de a antonímia da sequência citada se situar aquém da textualidade da mensagem mencionada, questão que, evidentemente importante para o funcionamento discursivo do discurso direto, faz intervir, tanto no plano da produção como no da recepção, fatores muito variados, entre os quais o do gênero (discurso científico ou erudito, grande imprensa, narrativa oral de conversação, etc.) se mostra essencial.[2] 

         Por essa razão, a análise discursiva do perfil em duas culturas aqui proposta tem como objeto não as formas de representação do discurso outro nas duas línguas, mas o gênero, como faz a Análise de Discurso Contrastiva (doravante, ADC). Como outros estudos comparativos em que o objeto de comparação são diferentes “culturas discursivas” (Claudel et al., 2013: 17), a ADC não compara línguas, “mas as manifestações de um mesmo gênero discursivo em no mínimo ‘duas comunidades ethnolinguísticas’ (Beacco, 1992:1, apud Claudel et al. 2013). Nessa perspectiva, o gênero é concebido como o tertium comparationis, sendo o ponto de partida para a constituição do corpus (invariante da comparação) e o fim da descrição e interpretação. As pesquisas da ADC puderam constatar que os resultados de análise em níveis transgenéricos se mostraram pouco produtivos. Na visão dos pesquisadores da ADC, a cultura discursiva existe no gênero e não além, e até apesar dos gêneros. O importante talvez a ressaltar é que não existe categorias de análise universal. 

         A pergunta que norteou esse trabalho foi o papel que desempenha o ponto de vista e o discurso outro na construção dos enunciados do gênero perfil. Para elaboração do seu texto, o jornalista entrevista o sujeito escolhido, outras pessoas a ele ligadas, faz pesquisa de documentos, no momento de algum evento envolvendo o perfilado: lançamento de livro, estreia de um filme, aniversário, prêmio, nomeação para um lugar de destaque, morte da personalidade, etc. 

         O Libération criou a rubrica perfil em 1994. Publicado na última página, surge, segundo o jornal[3], como contraponto à página inicial que apresenta o mundo “como tal”. O perfil seria o lugar para se falar do indivíduo, de sua vida, de seus desejos, ou seja, trata-se de uma abordagem pessoal das pessoas conhecidas e desconhecidas, que fazem a atualidade e o momento. O importante para o editor da rubrica é o encontro com a pessoa perfilada e seus amigos, sua família, seus inimigos, seu entorno. Todos são acompanhados de fotos feitas pelo fotógrafo do jornal.  

         A seção Plural da revista Carta Capital traz “perfis” sobre personalidades que no momento da publicação são “protagonistas” de algum feito. A edição on line diz apenas que Plural “traz os assuntos de cultura. Cinema, teatro, música, fotografia, quadrinhos”. No entanto, considero que se trata de um perfil, tendo em vista que o texto focaliza uma personalidade ligada ao “assunto de cultura”. Cada número, diferentemente do jornal cotidiano francês, contém mais de um perfil, todos com pelo menos uma foto do sujeito escolhido. Na edição impressa do corpus coletado, há diferentes categorizações do perfil dentro da seção Plural: protagonista (a mais frequente), memória, livro, entrevista. O único texto que encontrei categorizado como perfil foi o do ator José Abreu, publicado na seção Política. Certamente porque o ator é um militante do Partido dos Trabalhadores, como acentua o título, Zé de Abreu, o militante, e o subtítulo, O ator fala da filiação ao PT, da candidatura e da piada da bissexualidade. 

         Para a análise minuciosa do corpus, selecionei aleatoriamente os perfis do ator Jean Malkovich e do médico Jean-François Delfraissy, publicados no jornal francês; do cientista e músico Paulo Vanzolini e da professora e pesquisadora Jerusa Pires Ferreira, na Carta Capital. Na edição impressa dessa última, o primeiro perfil é categorizado como memória e o segundo como protagonista 

         A análise do corpus revelou que o perfil tem a mesma configuração nos dois veículos: ponto de vista do jornalista, constituído a partir dos discursos do e sobre o perfilado, na forma de enunciados narrativos, descritivos, seguidos da fala do entrevistado, introduzida de forma marcada para ilustrar ou desenvolver o ponto de vista do enunciador. As formas e categorias de representação do discurso outro também são praticamente as mesmas nas duas línguas: discurso bivocal do jornalista, citações de falas e palavras dos entrevistados. Do ponto de vista teórico, pode-se dizer que a heterogeneidade é a noção de base que se encontra (1) nos tipos de enunciados: a descrição e a narração são feitas de um determinado lugar em que se seleciona “fatos” ou eventos, indissociáveis dos valores e afetos, ou seja, tem-se ao mesmo tempo ponto de vista e reacentuações; (2) na relação ao discurso outro: nas formas bivocais em que numa só voz se encontram misturados conteúdos e acentos apreciativos de dois sujeitos: discurso híbrido com paráfrases da fala do entrevistado, discurso difuso do entrevistado na voz do jornalista, alusão.   

 

Referências : 

 

Authier-Revuz, J. “La représentation du discours autre : un champ multiplement hétérogène », in J. M. L. Muñoz, S. Marnette et L. Rosier, Le discours rapporté dans tous ses états, Paris, l’Harmattan, 2004.  

 

Bakhtin, M. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2003.   

 

Claudel et al. Cultures, discours et langues. Nouveaux abordages. Limoges, LambertLucas, 2013. 

 

Cunha, D. A. C. O funcionamento dialógico em notícias e artigos de opinião In: Gêneros textuais e ensino ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. 

 

_______. A representação da fala no diálogo literário. Investigacões (UFPE). , v.17, 2005. 

 

_______. Formes et degrés d’orientation dialogique, genre et point de vue, in S. Branca-Rostoff et al. L’Hétérogène à l’œuvre dans la langue et les discours, Hommage à Jacqueline Authier-Revuz. 1 ed. Limoges, Lambert-Lucas, 2012. 

 

_____. Comprendre la construction du point de vue dans les commentaires des lecteurs de la presse brésilienne on line, in Carcassonne et al., Points de vue sur le point de vue, Limoges, Lambert-Lucas, 2015. 

 

 François, F. Quelques points de vue sur les points de vue, in Carcassonnne et al., Points de vue sur le point de vue, Limoges, Lambert-Lucas, 2015. 

  
 
 

 

[1] Este trabalho faz parte do projeto de cooperação internacional entre a UFPE e a Universidade Sorbonne-Nouvelle-Paris 3, intitulado Representação do Discurso Outro e discursividade escrita: estudo comparativo em francês, espanhol e português brasileiro, financiado pelo Programa Capes-Cofecub.   

[2] Grifos meus. 
[3] http://www.liberation.fr/livres/2010/10/11/le-portrait-du-portrait_685536