Sheila Vieira de Camargo Grillo

 A influência do conceito de diálogo de Vossler, Iakubínski e Vinográdov sobre MFL  

 

 

Sheila Vieira de Camargo Grillo

 

 

 

 O conceito de diálogo e seus correlatos dialogismo, relações dialógicas, pequeno e grande diálogo são uma marca identificadora não só de MFL, mas também do conjunto da obra do Círculo de Bakhtin. Em MFL, o diálogo é não só, como há pouco exposto, a forma mais importante da interação discursiva, mas também uma hipótese explicadora da organização do parágrafo e, principalmente, para explicar o problema do discurso alheio, tomado como “reação da palavra à palavra”, sendo a inclusão do diálogo no contexto autoral é uma das formas de transmissão do discurso alheio: o discurso direto. Entre os autores que se ocuparam da questão do diálogo, MFL cita Vossler, o artigo de Iakubínski “Sobre o discurso dialógico” (1923) e o livro de Vinográdov “Sobre a poesia de Anna Akhmátova”(1925); esses dois últimos serão objeto de nossa exposição a seguir.

         Para Vossler, uma vez que na base de qualquer língua estão o ato criativo do indivíduo e os atos de fala individuais, “a atividade consciente e perspicaz” (VOSSLER, 1963[1923], p. 122), então primeiramente exige-se o estudo do processo de “fala”, que é o objeto de estudo dos linguistas em contraponto ao ouvir/ler, que é o objeto de estudo dos filólogos. Ao distinguir quatro grandes modalidades de linguagem – a prosa, a poesia, a eloquência ou retórica e a linguagem corrente e diária – Vossler propõe que o modo mais natural das duas últimas é o “circuito falar, ouvir, compreender e re-falar ou contra-falar (isto é, responder)”(1963[1923], p. 242) e que o monólogo “pode ser considerado como um diálogo consigo mesmo e todo diálogo como uma soma de monólogos” )”(1963[1923], p. 242) e, em seguida, conclui que os gêneros poéticos (lírica, epopeia e drama) compreendem sempre um ouvinte, público ou expectador. Vossler vai além ao observar que “a consciência individual é uma coisa muito tardia e refinada” )”(1963[1923], p. 244). Vemos aqui uma das origens do conceito de diálogo em MFL, aqui concebido como a forma mais importante da interação discursiva. 

        No artigo que acabamos de citar, Iakubínski objetiva: mostrar que o diálogo é um fenômeno especial do discurso, e apontar em que consiste esse caráter “especial”.

        Com esse propósito, afirma que a linguagem é um comportamento humano ao mesmo tempo psico-biológico e sociológico e considera que o estudo da língua na dependência das condições de comunicação (ordem sociológica) é uma base fundamental da linguística da época. A importância da diversidade funcional da língua na comunicação discursiva é relacionada ao interesse pela linguagem literária ou poética, surgida no final de 1916 e início de 1917 em trabalhos da “Sociedade para o Estudo da Língua Poética” (OPOYAZ), da qual faziam parte Viktor Vinográdov (1895-1969) e Liev Iakubínski (1892-1946). A distinção entre linguagem prática e linguagem poética proposta, nesse momento, por esses autores é considerada imprecisa por Iakubínski, que se propõe a investigar as diferentes formas do enunciado discursivo (retchevóe vyskázyvanie), em particular a distinção entre monólogo e diálogo. 

         Iakubínski se propõe a investigar as formas humanas diretas (face a face) em ligação com as formas diretas de interação discursiva, constatando a possibilidade de formas monológicas (no tribunal, em cerimônias) e dialógicas (conversas rápidas). No artigo, Iakubínski concentra-se nas formas dialógicas diretas, com base no trabalho de L. V. Scherba que, ao pesquisar determinados dialetos, concluiu ser o monólogo uma forma linguística artificial e o diálogo, natural, uma vez que nesses dialetos não havia monólogos, apenas diálogos entrecortados. 

         Com base nessa concepção, Iakubínski descreve uma série de caraterísticas do diálogo direto (ou conversação, em termos mais atuais), das quais exporemos apenas quatro:

 

  1. A compreensão do discurso alheio depende não só do discurso exterior, mas também de nossas experiências internas e externas anteriores, da “massa aperceptiva” de dado indivíduo ou, em termos atuais, dos conhecimentos prévios dos interlocutores. A importância geral da apercepção da compreensão do discurso, como fator de diminuição da significação dos próprios estímulos discursivos é bem mais clara no discurso dialógico do que no discurso monológico;

  2. Considerando que nossa existência cotidiana está cheia de padrões repetitivos, os padrões de nossas interações são acompanhados por padrões constantes de interação discursiva em estreita associação;

  3. Na comunicação dialógica a situação cotidiana é um dos fatores de percepção do discurso, um de seus aspectos, tendo um significado comunicativo. Em consequência disso, o papel dos estímulos discursivos diminuem, eles deslocam-se um pouco para o pano de fundo, eles não estão sujeitos a uma percepção nítida. Na produção própria fala, ocorre um cálculo inconsciente do significado comunicado por meio da situação cotidiana, por isso essa fala pode ser menos completa, menos nítida; não sendo representado o aspecto necessário da reflexão e da seleção, a própria fala tende a aparecer na ordem da simples ação volitiva e com elementos corriqueiros;

  4. Na experiência diária, podemos observar como nós frequentemente não expressamos a inteireza de nosso pensamento, omitimos palavras necessárias, pensamos uma coisa, mas falamos outra: nossa intenção discursiva não corresponde à realização. Tudo isso é condicionado pelos temas e outras leis psicofisiológicas; a própria ação livre dessas leis são condicionadas pela falta de concentração que controla a atenção aos signos do discurso. Disso, Iakubísnki conclui, com a ajuda de exemplos de mudanças fonético-fonológicas descritas por diversos linguistas russos da época, que o caráter mais progressista do diálogo em relação ao monólogo está no fato de que a mudança da língua, a criatividade “discursiva” não ocorre em uma forma consciente (posição defendida por Vossler, por exemplo), mas está ligado ao caráter inconsciente da “pronúncia”, da qual está ausente a concentração da atenção, isto é, o fenômeno da automatização.

 

       Iakubínski encerra seu longo artigo apontando a falta de pesquisas com diálogos reais e que o uso de obras literárias, de onde o próprio Iakubínski extrai boa parte de seus exemplos, deve ser feito com cautela.

       Vinográdov, em seu livro sobre a poesia de Anna Akhmátova publicado apenas dois anos após o artigo de Iakubínski, busca compreender “o estilo poético individual, como sistema fechado de meios linguísticos e particularidades que emergem mais claramente sobre o fundo do domínio das formas gerais do discurso cotidiano e suas diferentes funções” (1925, p. 5). Citando Saussure, Vinográdov propõe o estudo sincrônico da unificação individual-estética, devendo mostrar a mudança de um sistema em outro ou a formação de um sistema particular estável. Com essa base teórica, Vinográdov descreve os procedimentos mais essenciais da utilização de palavras na linguagem poética de Ana Akhmátova, por intermédio dos quais são esclarecidas simultaneamente algumas questões gerais e particulares da semântica ou simbólica do discurso poético.

 É no último capítulo da obra (chamado “Caretas do diálogo”) que Vinográdov aborda o papel do diálogo como medida tomada por Akhmátova para evitar, parcialmente, o perigo da padronização da linguagem a se repetir de um poema a outro. Vinográdov elenca as seguintes caraterísticas do diálogo na poesia da autora russa:

  1. O diálogo define a composição do poema, reduzindo a narração (“skaz”) à descrição dos detalhes situacionais. A poetisa pode apresentar-se simultaneamente na condição de narradora, que compõe o fundo da ação, e de participante do diálogo no qual sua réplica cresce para tornar-se monólogo, o qual novamente encerra em si fragmentos do discurso dialógico.

  2. Em outro grupo de poemas, o diálogo também não é completo: a narração (“skaz”) ocorre com vocativo e com lirismo apelativo, porém nele são introduzidas as palavras alheias. Isso ocorre de dois modos: observação breve que compõe às vezes o sustentáculo do poema por meio do desabafo emocional e das recordações contrastivas; e um discurso longo ou monólogo dirigido à heroína.

  3. Por fim, em um terceiro grupo de poemas, o diálogo - com suas réplicas lacônicas e agitadas bem como com ligeiras deformações entonacionais – serve ao esclarecimento da ação, aguçando a percepção da mudança das diferentes etapas dos acontecimentos e esclarecendo seu curso de modo emocional. São especialmente representativos aqueles poemas em que a ação está contida no diálogo. Aqui a construção do diálogo deve ser investigada em suas direções: primeira, a relação do tom do diálogo e da composição verbal de suas réplicas com as formas da narração (“skaz”) e a composição frasal dentro das réplicas; segundo, o sistema de alternância de réplicas. 

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 O estudo do diálogo em MFL é influenciado pelas obras de Vossler, Iakubínski e Vinográdov. Para Vossler, o diálogo é a forma mais natural de linguagem, sendo compreendido tanto enquanto a interação face a face, quanto o diálogo presumido em textos escritos. Já Iakubínski e Vinográdov caracterizam o diálogo com base nos princípios formalistas de automatização da linguagem práticocotidiana e desautomatização da linguagem poética. Em MFL, opera-se uma leitura crítica dessas fontes no sentido de orientar o diálogo em uma chave sociológica, compreendendo não apenas os elementos da situação imediata de comunicação, mas também as ênfases valorativas, as esferas da atividade humana, a ideologia do cotidiano, entre outros.