Anderson Salvaterra Magalhães
 

Linguagem, intelecção e sociação: uma leitura dialógica de registros lexicográficos  

 

 

Anderson Salvaterra Magalhães

 

UNIFESP

 

 

 

       Este trabalho faz parte de uma investigação maior acerca da relação entre as tecnologias de memória cultural e os discursos constitutivos e mobilizadores de processos de construção, de critérios de validação e de modos de manifestação de laços e arranjos coletivos no cenário brasileiro, com ênfase na questão vernacular. Entende-se que o senso de vernáculo no Brasil seja gerado pela tensão linguísticocultural deflagrada a partir da colonização europeia, em particular, lusitana, que, por um lado, concebe como ádvena a multiplicidade étnica, cultural, linguística que encontra e, por outro lado, projeta uma unidade política e territorial ao vasto e heterogêneo espaço geográfico. Assim, a construção de Brasil e do que é significado como próprio do Brasil está necessariamente implicada nessa tensão fomentadora de significados e sentidos, e a língua desempenha função preponderante nesse processo. 

        Especificamente neste trabalho, verifica-se como o léxico pode corroborar a língua portuguesa do Brasil e atualizar discursos que a) são decisivos para a construção e consolidação do que pode ser chamado de brasilidade e b) permitem identificar a produtividade ideológica da memória da língua portuguesa no Brasil como língua portuguesa do Brasil. O objetivo é demonstrar, a partir de uma leitura dialógica de verbetes em três dicionários de língua portuguesa – a saber, um do século XVIII, outro do século XIX e um terceiro da atualidade – como o registro lexicográfico documenta não apenas formas linguísticas, mas também valores constitutivos de áreas semânticas da existência decisivas para o delineamento do discurso da brasilidade. As nuanças recuperadas em dicionários de tempos diferentes dão pistas de como se consolida a memória da língua portuguesa do Brasil, isto é, a memória que indica o horizonte social que permite enquadrar valores como próprios do Brasil.

         Curiosamente, a relação entre léxico, memória e organização social pode parecer tanto evidente quanto estanque. Se, por um lado, soa contraintuitivo imaginar que a organização de grupo, sua linguagem e o repertório que compartilha não sejam implicados nem imbricados, por outro, qualquer análise desses aspectos esbarra no desafio interdisciplinar, o que sugere serem objetos distintos. De fato, são. Porém, do ponto de vista dialógico aqui advogado, são interdependentes. Para tratar dessa interdependência, são retomados alguns pontos do pensamento de Bakhtin e o Círculo – com destaque para as noções de horizonte social e área semântica da existência – e de Georg Simmel – especificamente sua concepção de sociação.

        Com base na articulação entre tais pensadores, destacam-se duas premissas que sustentam o dispositivo analítico proposto: 1) língua, na condição de sistema de signos ideológicos, é um construto sociocultural; 2) língua e sociação são interdependentes. No caso da questão vernacular brasileira, não há como dissociar a construção da brasilidade – sociação que tem desenhado as sociedades brasileiras possíveis – e língua portuguesa – língua em que se têm dado as relações sociais validadas como brasileiras. Para o exame do funcionamento dessa articulação língua/sociação, sugere-se, ainda, breve reflexão sobre como o discurso, flagrado em verbetes tomados como manifestações enunciativas concretas – atos responsáveis –, funciona como vetor semântico que interpela a palavra (léxico) e fomenta áreas semânticas de existência (índice de sociação).

         O percurso de leitura dos verbetes proposto permite verificar que os valores estruturantes de cada um deles fomentam a potencialidade semântica lexical. Tal potencialidade constitui condição para memória da língua portuguesa no Brasil, e as alterações documentadas nos verbetes sinalizam um movimento em direção à consolidação de um português do Brasil.