Miriam Puzzo
 

A proposta pedagógica de ensino de gramática de Bakhtin e a estilística vossleriana

 

 

 

Miriam Puzzo (UNITAU)

 

 

 

O que motiva essa pesquisa é, em primeiro lugar, o diálogo que Bakhtin e o Círculo mantêm com a estilística alemã e o seu representante Karl Vossler e, em segundo lugar as relações com essa vertente que Bakhtin deixa entrever em suas aulas sobre o ensino de gramática, descritas no ensaio traduzido para o português Questões de estilística no ensino de gramática (2013).

 

Em Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006), na

 

discussão encetada com a teoria linguística saussureana e a estilística alemã, percebe-se certa ênfase na estilística o que não ocorre com a teoria linguística. Esse é um fator que de certo modo inspirou a investigação que propomos. Embora Bakhtin e o Círculo façam ressalvas a ambas, há certo valor atribuído a Vossler.

 

Percebe-se também na descrição das aulas do professor Bakhtin um enfoque pontual da estilística no processo de ensino da sintaxe, em especial das orações subordinadas sem conjunção.

 

Como não há nenhuma reflexão teórica a esse respeito nesse ensaio, a pergunta que merece resposta é: seria uma aplicação pura e simples da estilística vossleriana? Qual seria no fundo o verdadeiro objetivo da discussão do estilo na produção de sentido dos textos selecionados em suas aulas. Em que medida Bakhtin se apropria da estilística vossleriana, estabelecendo um diálogo maior com essa vertente? Quais seriam os aspectos convergentes? Qual seriam os limites dessa aplicação em virtude das concepções de linguagem, de enunciado concreto de Bakhtin e do Círculo?

 

Portanto, para investigar melhor essas questões, foram selecionadas duas obras desse linguista comparatista para acompanhar seu percurso como pesquisador, filólogo e comparatista da evolução das línguas românicas e dos diferentes estilos de época na linguagem literária. 

 

Essa abordagem filológica e comparatista conduziu a uma visão particular e individual tanto das línguas estudadas quanto das obras literária, em cuja materialidade Vossler observa o estilo subjetivo e original tanto de época quanto dos autores. Portanto uma visão ainda idealizada da arte muito próxima da romântica. Sob esse aspecto, o estudo da evolução histórica das línguas e o estudo comparativo das obras literárias puseram a análise linguística, como expressão individual, em primeiro plano. É dessa vertente que surge a Estilística no início do século XX, com os alemães. Karl Vossler (1872-1949), dedicado aos estudos linguísticos dentro de uma perspectiva espiritualista, opõe-se ao determinismo e ao positivismo dominantes no final do século XIX e início do XX.

 

Esse é o ponto crucial que motiva novas investigações, tanto de pesquisadores alemães, no campo da língua e da literatura como Vossler, quanto dos russos como Bakhtin e o Círculo. Para desenvolver sua concepção de linguagem e de estilo, na obra Filosofia da linguagem, escrita em 19 23, Vossler retoma os trabalhos recentes do grupo de Genebra, principalmente Bally, discípulo de Saussure, para contrapor sua visão teórica. Assim, sem menosprezar tais perspectivas, vai apresentando os conceitos e fazendo seus comentários tanto positivos quanto negativos, por meio dos quais pontua sua concepção teórica a respeito de língua, estilo e gramática. 

 

Para Vossler, a língua é expressão do espírito e por isso apresenta uma natureza que é geral e específica ao mesmo tempo. A visão espiritualista da língua teve em Humboldt(1828) seu mais expressivo representante, valorizado como pesquisador tanto por Bakhtin quanto por Volochínov. Além dessa expressividade espiritualista, a língua também representa para Vossler um aspecto geral porque é partilhada pela comunidade de falantes e específica pela prática individual e subjetiva de cada membro dessa comunidade. Por isso ela não pode ser vista por um prisma meramente descritivo como propunha Bally, para quem a língua é de natureza funcional (Vossler, 1968). 

 

De acordo com Vossler, apesar de Bally reconhecer o aspecto vital da língua como expressão subjetiva, patente em seu Traité de stylistique française (1909), descarta essa possibilidade de observar a língua por considerar a individualidade criadora um entrave para o tratamento científico da teoria linguística, proposto por Saussure de quem foi discípulo. Nessa perspectiva, a idiossincrasia do estilo seria um impedimento para as generalizações necessárias de caráter objetivo, próprio da ciência cujas leis devem primar pela descrição e objetividade.

 

Contrapondo-se à generalização de natureza abstrata dessa tendência, Vossler considera que a palavra está ligada ao passado, não sendo possível ignorar essa realidade observando apenas a sua realização presente, de modo descritivo. Tal abstração conduz a uma visão desespiritualizada, automática e mecânica. 

 

Ao comentar a obra de Bally Le langage et la vie (1913), Vossler destaca os aspectos negativos e positivos de suas reflexões conceituais sobre a linguagem, considerando que ele expressa uma visão que engloba as investigações linguísticas de Saussure, Meillet e Bergson, e ao mesmo tempo tece uma reflexão crítica, promovendo a polêmica conceitual. Como Vossler assevera, “... lo mejor del libro está justamente en su fuerza polêmica contra errores y prejuícios que no se resignan a morir.” (VOSSLER, 1968,p. 119). 

 

Um dos aspectos negativos considerados por Vossler é o conceito de linguagem como função biológica, pois embora Bally não desconheça seu caráter evolutivo e histórico, ao adotar uma perspectiva científica, torna essa visão incompatível com a da natureza evolutiva da língua. Para Vossler, a linguagem como função é abstração, um conceito vazio, ignorando o progresso e a vida que mobiliza a linguagem. Em suas palavras, é preciso “resucitar este cadáver y hacerlo capaz de progreso, hay que infundirle la vida, hay que pensar esa función como acción y energia ciegas, sino como actividad consciente y perspicaz.” (VOSSLER, 1968, p. 122). 

 

Pelos comentários de Vossler percebe-se a aproximação conceitual de linguagem como atividade permanente, como realidade viva, partilhada por Bakhtin e pelo Círculo. Esse é um aspecto relevante que demonstra o diálogo entre as duas concepções teóricas e que de certo modo perpassa pelas ações do professor de gramática.

 

Outro aspecto relevante de Vossler que merece destaque é a pesquisa histórica sobre a evolução das línguas latina e grega a partir da antiguidade e do confronto resultante do contato com outros povos românicos. No livro, Formas literárias en los pueblos românicos traduzido para o espanhol em 1944. Traça um percurso evolutivo da arte: poesia, teatro e novela no cruzamento cultural dos povos antigos em específico da língua latina em confronto com outras culturas. Analisa a influência do cristianismo na propagação cultural do latim e da linguagem culta, demonstra como o latim culto é difundido pelos religiosos nas escolas e conventos. Em suas considerações, o estilo da linguagem poética é investigado de modo muito profundo, observando a presença ou não das rimas, do ritmo e da influência do canto na construção literária.

 

Sob esse aspecto, as pesquisas de Vossler estão mais próximas da vida humana em sociedade que as pesquisas de Saussure muito mais descritivas e generalizantes. 

 

De forma semelhante, Vossler posiciona-se em relação à gramática pura e abstrata: rejeita o tratamento dos conceitos gramaticais distanciado da perspectiva histórica. Fundamenta-se no fato de que tais conceitos tornam-se históricos porque cada um deles é compreendido num tempo e num espaço determinados. Desse modo, Vossler restabelece as relações entre as formas idiomáticas e a cultura geral do povo, como afirma neste recorte: 

 

 

 

Los conceptos gramaticales (analogia, etc) son el reverso de los conceptos lingüísticos (sic) históricos. Y esto es no lo que anula sino lo que salva a la gramática: sin los conceptos de comunidad linguística, evolución lingüística, etc., una gramática no puede ser ni pensada sistemáticamente(sic) ni hallada en la realidad. (VOSSLER, 1968, p.

 

87)

 

 

 

Para Vossler, é preciso considerar a linguagem de comunidades lingüísticas, o que uma gramática geral ignora, como afirma, “La gramática naturalística estima su valor riguroso en ceñirse a esta muerte del lenguaje” (VOSSLER, 1968, p. 86). Assim, há necessidade de recuperar o aspecto vivo que para ele é “la actividad espiritual del linguaje” (p.86)

 

Apesar da crítica que Bakhtin/Volochínov fazem à estilística, pela visão idealista, há pontos de convergência que merecem ser ressaltados. O aspecto mais importante é de que o estilo propicia a expressão da individualidade do enunciador e de seu posicionamento valorativo diante do contexto social que uma expressão engessada pela reprodução de modelos não permitiria. Esse é o trabalho com o estilo em sala de aula: permitir que a expressividade individual se oponha à ditadura de uma língua unificada por interesses de nivelamento artificial dos seres humanos. É possível entender tal preocupação se relacionarmos o contexto da revolução russa e seus desdobramentos autoritários à posição questionadora desse sistema por Bakhtin e o Círculo. O nivelamento impositivo de uma língua unificada impediria a movimentação livre da língua como expressão de posicionamentos valorativos diferenciados. 

 

Talvez seja esse o ponto de convergência com a estilística alemã e com Vossler, apesar dos limites identificados nessa teoria. Ao tratar do uso de construções sintáticas com seus alunos, o professor almejava a possibilidade de seus alunos empregarem os recursos gramaticais de modo menos rígido, permitindo que seus valores pudessem encontrar meios adequados de expressão. A estilística nesse caso estaria sendo entendida como a expressão do indivíduo frente ao seu contexto social. 

 

“Ninguém pensa, obviamente, em opor-se à afirmação segundo a qual o estudo da arte verbal necessita do aporte de uma ciência da palavra, isto é, da linguística.

 

É evidente que sem o conhecimento da gramática captaremos bem pouco sobre a construção sintática de uma obra poética. Mas nenhuma gramática dirá que função teria uma determinada construção sintática na estrutura estética de qualquer obra: qual seria , por exemplo, a função do discurso indireto livre na enunciação dos heróis de Pushkin ou de Dostoiévski...” (VOLOCHÍNOV 2013, p.215)

 

Deslocando a concepção do estilo unicamente centrado na inspiração subjetiva, de natureza espiritual, Bakhtin aproveita as peculiaridades da expressão individual relacionando-a com o contexto imediato e com as atitudes valorativas que o sujeito manifesta em seu discurso. Tanto Vossler quanto Bakhtin e o Círculo rejeitam a análise de uma língua estratificada, pensam na língua como atividade dinâmica, como a própria vida, esse é o aspecto que aproxima as duas teorias.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

 

BAKHTIN, Mikhail,Mikhailovitch. Dialogic Origin and Dialogic Pedagogy of Grammar: Stylistic in teaching russian language in secondary school. (Translated by Lydia Razran Stone) In Journal of Russian and East European Psychology, vol. 42, nº 6, november-december 2004, p.12-49.

 

___________. Questões de estilística no ensino da língua (Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo) 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2013.

 

___________. Teoria do romance I: a estilística.(Tradução da edição russa organizada por S. Botcharov e V. Kójinov; prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra). São Paulo:

 

Editora 34, 2015.

 

_____________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. (Trad. Aurora F. Bernardini, José P. Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena S. Nazário, Homero F. de Andrade), 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990.

 

___________/ VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem,( Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira)12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

 

SÉRIOT, P. Volosinov e a filosofia da linguagem. (Trad. Marcos Bagno), 1ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

 

VOSSLER, K. Filosofía del lenguaje. (trad. Amado Alonso y Raimundo Lida), 5ª ed., Buenos Aires: Editorial Losada S.A., 1968. 

 

___________. Formas literarias en los pueblos románicos.(trad. do alemão Carlos Clavería), 2ª ed., Buenos Aires/México: Espasa- Calpe Argentina, S,A. 1948.