Maria de Fátima Fonseca Guilherme
 

Discutindo o letramento em língua inglesa em uma perspectiva bakhtiniana

 

Maria de Fátima Fonseca Guilherme (UFU)

 

 

 

Este trabalho tem por objetivo refletir, numa perspectiva bakhtiniana, como se dá o letramento em Língua Inglesa (LI), a partir da análise de textos escritos por meio de diários crítico-reflexivos dialogados entre o professor-formador e um licenciando de primeiro período de um Curso de Letras. Entendemos que, ainda que o licenciando não tenha adquirido a escrita em LI, ele deixa transparecer em seus diários, mesmo que em língua materna (LM), sua compreensão das trocas dialogadas com o professor, que se manifestou para ele na língua-alvo, por meio do dispositivo crítico reflexivo dos diários dialogados. 

 O diário crítico-reflexivo dialogado é aqui compreendido como uma forma de interação verbal entre o professor formador e o professor em-formação, elaborado por este ao final de cada aula. O conteúdo deste diário se refere a uma descrição interpretativa em que o professor em-formação descreve, interpreta e relaciona como está vivendo o processo de interação verbal em seus estudos em LI. Essa descrição reporta o processo intrapessoal de cada licenciando, na relação com o processo exotópico vivido na aula de LI em sua relação com o professor, com o material apresentado nas aulas, com a metodologia, com os colegas e com a língua em estudo. Ao final de cada aula, cada aprendente escreve um texto para o diário e o entrega ao formador, que, na aula seguinte, o devolve comentando, sempre em LI, acerca do que foi expresso pelo licenciando a cada diário. Os diários podem ser escritos de três formas: apenas em LM; utilizando-se de um registro de interlíngua em que o aprendente alterna sua escrita em LM com a LI; ou ainda, apenas em LI em que diversos níveis de interlíngua emergem na materialidade dos enunciados. Ao final do semestre, os licenciandos revisitam os seus diários e os reescrevem para que possam ressignificar, em quaisquer das formas acima mencionadas, sua vivência enunciativointeracional em seus estudos em LI. 

 Em relação ao conceito de letramento, existe uma diversidade de discussões em torno mesmo. No âmbito deste trabalho, nos apoiaremos, principalmente, nos fundamentos apresentados por Rojo (2009, p.11) quando postula que “um dos objetivos principais da escola é possibilitar que os alunos participem das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita (letramentos) na vida da cidade, de maneira ética, crítica e democrática”. A exemplo do que também afirma Bakhtin (2013), a linguagem a ser ensinada deve contemplar as demandas do cotidiano, da existência e da profissionalização, haja vista vivermos em uma sociedade globalizada em que a comunicação e a informação são compartilhadas continuamente, resguardadas suas condições éticas, democráticas, identitárias e heterogêneas. 

 O arcabouço teórico-reflexivo bakhtiniano representa nossos anseios teóricos em problematizar a questão do letramento em LI, na medida em que se instaura uma inter e transdisciplinaridade entre campos de conhecimento, para enfocar o processo de formação de professores de línguas. Nessa perspectiva, não poderíamos deixar de mencionar a posição de Bakhtin/Volochinov (1995) nos estudos do Círculo, com relação ao processo de aquisição de uma língua estrangeira (LE), principalmente quando afirma que na verdade, a língua não se transmite, ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. É apenas no processo de aquisição de uma LE que a consciência já constituída - graças à LM - se confronta com uma língua pronta, que só lhe resta assimilar. 

 Entendendo os diários aqui analisados como um gênero, pautamo-nos em Bakhtin/Volochinov (1995, p.123) quando postula que os gêneros se constituem nas diferentes esferas sócio-histórico-ideológicas da manifestação do signo ideológico e, por conseguinte, eles se materializam na realização linguageira de um sujeito na interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da língua. Dessa forma, os diários se apresentam como um gênero revelador da interação verbal, promovendo, então, uma constituição do sujeito na e pela linguagem. Tal constituição se revela, principalmente, no caráter dialógico das trocas linguageiras que permeiam essa interação. A interação verbal, pois, se processa enquanto um ato de linguagem em que os indivíduos sociais entrecruzam seus mundos possíveis, balizados pela ótica de um processo de ensino-aprendizagem. Vemos, portanto, que na dialogia que se constrói entre ensinante e aprendente, permeada pelo diário crítico-reflexivo dialogado, trata-se de momentos em que a palavra plena e única – nos dizeres de Bakhtin – é responsavelmente significativa. Nesse sentido, a escrita do diário se constitui, pois, enquanto um existir-evento irrepetível e singular, visto que hipotetizamos nesse ato um devir. Tal devir não existiria sem a perspectiva dialógica dessa interação verbal. 

 Numa perspectiva dialógico-enunciativo-discursiva, entendemos por aprendizagem crítico-reflexiva um conjunto de práticas de linguagem, cultura e existência em que se propõem formas de comunicação, expressão e identificação a partir de tomadas de posição e produção de sentidos, voltadas para a constituição de um sujeito diante de um conhecimento. A aprendizagem crítico-reflexiva se caracteriza por agregar um conjunto de procedimentos pedagógicos com vistas à promoção de uma visão metalinguística do processo de aprendizagem por parte do aprendiz. 

 A partir das reflexões teóricas em torno do conceito de interlíngua em Selinker (1972) e de observações pedagógicas acerca de como o processo de interlíngua é manifestado pelos aprendentes em aulas de LI, o que se percebeu é que esse processo acontece em diferentes etapas, de forma descontínua e não necessariamente em todas as suas manifestações, dependendo, portanto, do grau de interpelação do aprendente com a línguaalvo em estudo, além de seu foco no envolvimento da trajetória do sujeito em sua relação de letramento com a LE. Na abordagem crítico-reflexiva, em uma perspectiva bakhtiniana, trata-se de evidências interligadas por um conhecimento vinculado a um domínio de aplicação lógica. Tais evidências revelam condições de existência e modos de produção de lugares sociais. Essas condições e modos são explicitados a partir de uma percepção das relações de contradição-opacidade-dispersão que emergem nas práticas do cotidiano de um indivíduo. 

 Assim, vemos a aprendizagem crítico-reflexiva no ensino de línguas em uma perspectiva bakhtiniana como uma abordagem permeada pelo entrecruzamento de devires sob os quais o sujeito se inclina, se afasta ou toma uma posição em torno daquilo que o interpela. Nesse sentido é que dizemos que são as outricidades, essa alteridade de elementos que provocam o indivíduo social em sua forma de pensar, em sua relação com os outros, nos lugares que ocupam, nos tempos em que vivem e em suas formas particulares de ver o mundo, que o confrontam, com ele conflitam, fazendo-o contrastá-las, compelindoo ou cooptando-o para transpor esse obstáculo linguístico-enunciativo, a construção do letramento em LI, no caso deste estudo.

 Em nossa análise, priorizaremos o exame de enunciados-operadores (FERNANDES & SANTOS, 2008), determinantes de um processo dialógico que enuncia as condições de interação verbal com a LI no processo de letramento, a partir dos diários crítico-reflexivos de um dos graduandos, neste trabalho nomeado Antônio. Ao realizar a análise da materialidade linguístico-discursiva dos diários, podemos afirmar que a interação verbal ensinante/aprendente revela diferentes níveis de interlíngua, tratados enquanto formas e referências diversas na expressão da compreensão em diferentes manifestações linguísticas em LI. Tais formas remetem para um processo de letramento que emerge dessa interação verbal por meio de trocas linguageiras que permitem uma comunicação interlínguas retroalimentando a aprendizagem de uma LE. 

 Nossa concepção de ensino-aprendizagem de LEs não consegue enxergar um processo voltado para uma mera assimilação de estruturas linguísticas sem que se construa um movimento de identificação com a LE por meio de interações verbais. Antônio, sujeitoenunciador dos diários analsiados, representa um perfil de ingressante dos cursos de Letras que chegam à universidade sem ainda terem refletido sobre o papel da aprendência de uma LE, quiçá pelo domínio de seu funcionamento sistêmico-linguístico. Se os professores formadores não exercitarem essa percepção de natureza político-acadêmica, dificilmente atuarão como agentes de letramento (KLEIMAN, 2006, 2007, 2011) na formação de futuros professores de línguas estrangeiras. Nessa perspectiva pontuamos a relevância da arquitetura bakhtiniana como baliza teórico-metodológica para estudos sobre letramento em LI.

 

 REFERÊNCIAS 

 BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 7 ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1995. 

 _______. Questões de estilística no ensino da língua. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2013. 

 FERNANDES, C. A.; SANTOS, J. B. C. A Imagem como enunciado operador de memória. In: ROMÃO, L. M. S.; GASPAR, N. R. (Org.). Discurso midiático: sentidos de memória e arquivo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.

 KLEIMAN, A. B. Processos identitários na formação profissional: o professor como agente de letramento. In: CORREA, M. e BOCH, F. (Org.). Ensino de língua: representação e letramento. São Paulo: Mercado de Letras, 2006, p.75-91. 

 _______. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Revista Signo, Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, p.1-25, 2007. 

 _______. Letramento crítico: a escrita na formação profissional. In: Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada, 9, 25-28 jul. 2011, Rio de Janeiro. Caderno de resumos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Disponível em: <http://www.alab.org.br/images/stories/alab/caderno%20de%20resumos%20ix%20cbla%20a4% 20com%20errata.pdf>. Acesso em: 20 maio 2014. 

 ROJO, R. Letramentos múltiplos: escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. 

 SELINKER, L. Interlanguage. International Review of Applied Linguistics in Language Teaching. Vol. 10. No. 4. Philadelphia: The University of Pennsylvania Press, p.209-232, 1972.