Silvana Mabel Serrani
 

Heterogeneidade Discursiva e Memória Social Ibero-americana em uma Análise de Filme Documentário  

Silvana Serrani

 

(UNICAMP/CNPQ)

 Introdução  

Neste trabalho procuro discutir contribuições da análise da heterogeneidade discursiva (em um filme documentário), para os estudos de memória sociocultural ibero-americana. A abordagem articula categorias de análise fílmica e da concepção dialógica do discurso para estudar funcionamentos da heterogeneidade discursiva no filme Òrfãos do Condor (Huérfanos del Cóndor) - Cauri filmes e France 2, 2003 - de Emilio Pacull. O assunto de base é, como no poema “Nem morreu vitória nem acabou a história” (“Ni colorín ni colorado”) de Mario Benedetti (foco de um trabalho apresentado em Jornada anterior): crianças pequenas abandonadas em Valparaíso, Chile, depois da morte causada a seus progenitores (cidadãos uruguaios) moradores de Buenos Aires, Argentina, cuja filiação autêntica foi recuperada graças à entidade brasileira de direitos humanos Clamor[1]. 

 

Heterogeneidade Discursiva e Memória Social Ibero-americana em Órfãos do condor (Huérfanos del condor)

 Seu diretor, o realizador chileno Emilio Pacull, que trabalha na França e foi assistente de grandes diretores - como Costa Gavras, Rossellini, Littin e Truffaut - produziu mais de 30 filmes documentários, muitos deles premiados e a maioria dedicados a temas americanos[2]. Huérfanos del Cóndor (Órfãos do Condor) encontra-se em you tube no endereço http://www.youtube.com/watch?v=v9SL6sVYmaA e neste trabalho me concentrarei na primeira parte da obra, que é composta de duas seções bem diferenciadas. Ainda que ambas as partes estejam integradas pela relação temática. é possível pôr em foco uma delas.

 

Sobre concepções do gênero documentário 

Um tópico a ser discutido inicialmente é a concepção de documentário, à luz efetiva dos estudos discursivos. Digo ´efetiva´ porque na bibliografia sobre o gênero[3], há algumas confusões epistemológicas. Por exemplo, uma posição extrema, da qual me distancio, diz se apoiar em estudos do discurso, para advogar pela não distinção genérica entre filme documentário e filme ficcional. Essa posição sustenta que devido ao fato de se tratar sempre de representações da realidade, o campo do documentário e do ficcional ficam sobrepostos. Retira-se, assim, especificidade ao gênero em foco no nosso trabalho. Outra concepção, radicalmente oposta, fazendo paralelos entre a semântica cinematográfica e as proposições verdadeiras e falsas do formalismo lógico, define de modo rígido as fronteiras do documentário, como uma expressão – transparente - da realidade, em contraposição a mundos individualmente inventados na filmografia ficcional[4]. Em relação a isto, um ponto defendido neste trabalho é que a observação da heterogeneidade discursiva pode ser um caminho produtivo para, sem cair na inocência epistemológica de desconsiderar a dimensão de imagem maquínica produzida por todo filme, refletir sobre níveis, tipos de compreensão e efeitos de sentidos específicos produzidos pelo gênero documentário.

 

Pluralidade de imagens e o olhar de Pacull 

 Mediante enquadres no campo e fora de campo, o diretor articula diferentes subgêneros discursivos que, na concepção dialógica de heterogeneidade, correspondem àquela de tipo ´mostrada´ (Authier). Os principais sub-gêneros presentes na obra são:

 

  1. entrevistas (a protagonistas, testemunhas oculares e participantes nas investigações do caso, filmadas durante a realização do documentário ou pretéritas, recuperadas);

  2. Imagens de espaços físicos de memória (Pierre Nora), com ou sem presença de protagonistas ou testemunhas do caso. Também, realizadas durante a produção do filme ou recuperadas a partir de filmagens anteriores (jornalísticas, domésticas ou amadoras); 

  3. fotos (de pessoas ou de textos jornalísticos – da época em que começam a poder publicar-se no Cone Sul, graças à pressão de entidades de direitos humanos, como a brasileira Clamor ou a argentina Avós da praça de maio). 

     

 

Heterogeneidade Linguística, Procedimentos cinematográficos e Memória 

 No caso da entrevista à avó biológica das crianças apropriadas, a heterogeneidade linguística é posta em evidência na pergunta, em português, da jornalista à avó e produz o efeito de sentido de atestar pontes interculturais luso-hispánicos de América. Note-se que incluso se escuta a voz de um tradutor para a avó.

 Na apresentação do trabalho serão discutidos procedimentos de câmera, como planos, enquadres e inclinações de ´takes´, em função dos efeitos de sentido produzidos na obra. 

 Também, serão mostrados exemplos relativos à utilização de sons: vozesin”, “off”, “through” e “over” (termos comumente utilizados em inglês), para a análise de falas produzidos diretamente ou não pelo que é visto na imagem; ruídos fundamentais para a produção de sentidos cruciais na interpretação do filme o funcionamento da música na produção de significações.

 Serão discutidas também articulações entre os casos de heterogeneidade mostrada e a mobilização de pluralidades de sentidos que são indícios de elementos de heterogeneidade constitutiva. Por exemplo, na entrevista a Anatole adulto, a tematização de contradições de pensamento no protagonista, mediante a expressão de questionamentos a seus pais biológicos. Isso faz como que efeitos sobre construção ideológica de sentidos sejam expostos no filme.

 Nas conclusões, serão retomados alguns pontos da análise para observar que o olhar do diretor Pacull não é desprovido de tomada de posição, mas sem construções esquemáticas de sentido. Será salientado também que a análise do funcionamento da heterogeneidade discursiva permite fundamentar nossa conclusão de considera-lo um filme-pesquisa.

 E para finalizar, serão mencionadas repercussões muito atuais, como a) produções recentes na mídia (por exemplo, séries de programas televisivos realizados há pouco tempo no Chile, na ocasião dos 40 anos do golpe de Pinochet -muitos desses programas estão no Youtube-) com entrevistas a Anatole, agora com 40 anos e projeções, na TV, de trechos deste filme.; e b) ações atuais da organização Avós da Praça de Maio e a realidade da situação de pessoas hoje adultas que foram apropriadas quando crianças ou bebês (por exemplo, o neto da presidente dessa associação foi recuperado no ano passado, graças a um pedido feito durante a última copa mundial de futebol). Comprova-se, assim, que se trata de um tema do século XX com repercussões e implicações cruciais para a construção das democracias ibero-americanas deste século XXI.

  

 


 

[1] Isso está documentado no lviro de Samarone LIMA (2003): Clamor a vitória de uma conspiração brasileira. 

[2] Como los premiados: Les enfants de rues à Mexico; Mémoires de la Terre de Feu; Alejo Carpentier Ici et là bas; Hollywood y el Pentágono.

[3] Na exposição oral serão detalhadas referências bibliográficas específicas.   

[4] Carrol, Noël (1997), em "Fiction, Non Fiction, and the Film of Presumptive Assertion: a conceptual analysis", in Allen, Richard e Smith, Murray. "Film Theory and Philosophy". Oxford University Press, 1997.