Jean Carlos Gonçalves
 

Meu corpo, meu texto: Dramaturgias do ator em perspectiva dialógica

 

 

 

Jean Carlos Gonçalves

 

(PPGE - PPGE:Tpen – ELiTe/CNPq/UFPR)

 

 

 

Esse estudo, vinculado ao grupo de pesquisa ELiTe/CNPq/UFPR (Laboratório de Estudos em Educação, Linguagem e Teatro), se debruça sobre o processo de construção cênica CARMEN, desenvolvido no âmbito das disciplinas optativas Laboratório Experimental de Dramaturgias do Ator e Laboratório Experimental de Linguagens Cênicas, que ocorreram no primeiro e segundo semestre de 2015, respectivamente, no curso de graduação em Produção Cênica, Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. A partir de uma proposta que buscou trabalhar com experiências teatrais fundamentadas na relação entre corpo e dramaturgia, o processo CARMEN se constituiu de diferentes momentos, espaços, provocações, indutores de jogo e organizações cênicas. Mais do que o interesse pela montagem de um espetáculo, o olhar para o desejo de dizer do e sobre o corpo motivou diferentes arranjos e estados performáticos, traduzidos por entrelaces de partituras corporais produtoras de sentido enquanto signo estético-artístico. Ancorado no treinamento físico como mote das ações cênicas, o grupo de alunos-atores foi convidado a pensar a sua relação com o corpo por meio da pergunta: o que o corpo não pode? A resposta à questão precisava ser via corpo, ou seja, como o corpo responde cenicamente a uma inquietação sobre si mesmo? Durante as aulas, e é bom que se ressalte que o processo aconteceu em um ambiente educacional/universitário, os alunos-atores começaram a ter contato, para dar conta da sua questão norteadora, com diferentes materialidades externas, que contribuíram para a construção individual e coletiva do trabalho: 

 

  1. Análise de imagens, aleatoriamente selecionadas do banco de imagens do Google, ao se realizar uma busca com a palavra corpo. As imagens mais significativas para a temática da investigação cênica mostravam corpos em estado de angústia, privados de suas liberdades, com amarras de caráter físico e moral, o que levou o grupo a uma visão sobre corpo bastante relacionada a insatisfações e frustrações; 

  2. Jogos cênicos voltados para a interação entre os sujeitos e seus corpos, a partir das quais foi possível depreender sentidos de corpo voltados às dificuldades de abraçar, tocar, acariciar e violentar o outro, ou seja, sempre que um corpo precisa estar em contato físico com outro corpo o resultado é o desconforto; 

  3. Realização de experiência com salas de bate-papo nas quais o tema recorrente remontou à volúpia e às limitações e/ou liberdades sexuais do corpo; 

  4. Vivência dançante com a música tema do filme Barbie - Portal Secreto <https://www.youtube.com/watch?v=ciuvEwK4cc8>, a partir da qual foi possível discutir a influência dos bonecos Barbie e Ken sobre as experiências corporais de homens e mulheres desde a infância. 

  5. Discussões a partir das memórias de corpo dos alunos-atores, incluindo aí fatos marcantes que contribuíram para a construção de suas narrativas corporais, compreendidas, neste trabalho, como não finalizadas, in-process, vinculadas diretamente ao vivido e às relações com o outro (sujeito, espaço, tempo).

    O diálogo com a teoria bakhtiniana se dá, neste trabalho, a partir do texto O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (PCMF), escrito por Bakhtin em 1924 e publicado no volume Questões de Literatura e de Estética – A teoria do Romance (conjunto de ensaios, escrito entre 1924 e 1941, organizado pelo autor em Moscou, e publicado somente em 1975, após sua morte; publicado no Brasil em 1988. Em PCMF Bakhtin faz uma discussão a respeito de Crítica da Arte e Estética Geral, apontando principalmente para a impossibilidade de separação entre poética e estética. Depois, ao desenvolver separadamente cada um dos “problemas”: Conteúdo, Material e Forma, sua abordagem ganha o sentido de inter-relação entre cada uma das partes componentes de uma obra de arte. É aí que vemos o Conteúdo como o conjunto de limites de certo domínio cultural, que está sempre nas fronteiras, implicando o jogo necessário entre o ético e o cognitivo; o Material como ato concreto, possibilitado pela palavra, pela língua viva, e que desencadeia uma importante reflexão sobre a técnica no fazer artístico; e Forma como a forma de um Conteúdo, inteiramente realizada no Material, e que deve ser compreendida tanto a partir do interior do objeto estético puro (forma arquitetônica), como a partir do estudo da técnica da forma (o todo composicional e material da obra de arte). Para os processos de criação teatral, é fundamental a compreensão de que uma criação está sempre em uma relação de valores com outras pessoas, outros objetos, outras coisas. A obra de arte parte de um ato cultural, noção cara aos estudos bakhtinianos, e é alicerçada pelo fato de que ele, o ato cultural, “vive por essência sobre fronteiras: nisso está sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno, torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre” (BAKHTIN, 2010, p. 29). Logo, há pontos de vista na criação, que estão sempre em diálogo, e são esses pontos de vistas criadores que garantem à arte seu status de obra, ou de objeto estético. Para o teatro, que se constitui como criação coletiva, de grupo, essa reflexão tem muito a contribuir, pois ao pensar o ato artístico como um movimento que acontece em uma atmosfera valorizante, definida reciprocamente, se assume o conflito dos processos e sua íntima ligação com os sujeitos que concretizam sua existência como fenômeno cênico. A coletividade é, então, o centro de preocupações da criação artística, na qual ganha espaço de discussão a necessidade de compreensão da liberdade de criação do artista, calcada na relação com um mundo a ser conhecido e provado. Como o pensamento bakhtiniano anuncia de forma absolutamente coerente em todas as suas obras, o ato é sempre relativizado. Há sempre uma possível noção de verdade. Nas fronteiras entre os valores axiológicos, o enunciado concreto será sempre cheio de sentidos relativamente estáveis. “A obra de arte e a contemplação se relacionam com os sujeitos éticos, com os sujeitos do comportamento e com suas inter-relações sociais” (BAKHTIN, 2010, p. 43). Dessa forma, o espaço para a interpretação da obra de arte está dado. Mesmo que por um momento, o teatro deva possibilitar a sensação comum de uma experiência compartilhada, cada sujeito terá vivido sua própria experiência, e terá extraído dela, os sentidos que serão só seus. Cada sujeito, com seu olhar único, sua posição única e a partir de um momento irrepetível, vivencia e contempla a obra de arte, num jogo de sentidos que individualiza os processos de alteridade a partir da arte, fazendo com que para cada um, os sentidos sejam também únicos e, portanto, diferentes dos provocados nos demais integrantes de um processo. É na exploração dessa perspectiva que o processo CARMEN encontra lugares de autoria, que passam sempre por construções individuais e reconstruções de grupo, para que o espetáculo se organize de forma coerente e para que a temática se apresente com pelo menos alguns indícios de arquitetônica uníssona, ou seja, que o emaranhado de vozes construa sentido para um todo complexo e nem sempre harmonioso. Organizado sob a batuta do diretor, o processo CARMEN apresenta, hoje, diferentes materialidades a partir do qual pode ser analisado, desde aquelas advindas da sua criação (experimentos cênicos realizados em sala de aula) até aquelas que apresentam os resultados das experiências dramatúrgicas (partituras corporais individuais e o espetáculo em sua versão “acabada”).

    Duas questões se colocam, então, para discussão nesta comunicação: 

  1. Quais os limites e possibilidades da criação dramatúrgica quando esta se dá pela prática corporal do ator? Para respondê-la é necessário que firmemos o acordo de que, mais do que uma obra teatral, CARMEN se constitui como um processo no qual reverberam as Artes do Corpo (ANDRÉ, 2002), ou seja, há lugar para performance, dança, rituais, cantigas, e para a compreensão do corpo como arte e principalmente como efervescência dramatúrgica. 

  2. Como organizar artisticamente o desejo de dizer a partir do corpo e no corpo do ator? Lançando a âncora, ainda, nas Artes do Corpo como propulsoras de sentido, é preciso pensar o corpo como lugar apropriado para as encenações do desejo, “porque toda a encenação é a encenação do desejo no sentido mais literal da expressão: pôr em cena o desejo ou deixar o desejo vir à cena, à boca de cena através de todas as suas metamorfoses” (ANDRÉ, 2002, p.25). E esse desejo se traduz por palavras, que brotam do corpo dos atores, que dançam nos e entre seus corpos e ainda na relação do processo com o público.

     

    Referências

    BAKHTIN, Mikhail. O problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária. In: BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: A Teoria do Romance. Tradução (do Russo): Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. Sexta edição. São Paulo: Hucitec Editora, 2010 [1924], pp. 13 – 70.

    ANDRÉ, João Maria. As Artes do Corpo e o Corpo como Arte. In: Philosophica. Revista do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. V. 19, N. 20. Lisboa, 2002, pp. 7-26.