Renata Coelho Marchezan

 

A obra de M. Bakhtin em chave simmeliana

 

Renata Coelho Marchezan (UNESP, Araraquara)

 

       A contextualização histórica de uma teoria, o estabelecimento de suas filiações e o entendimento de sua evolução, sempre necessários, mostram-se, como sabemos, ainda mais relevantes, no caso das obras do Círculo de Bakhtin, em razão das especificidades de sua produção e circulação. É nesse caminho que temos tentado trilhar, e, para tanto, propusemos desenvolver, no âmbito do GT Estudos Bakhtinianos, da ANPOLL, o projeto que dá nome a esta apresentação. Buscamos com ele problematizar a interlocução da obra do Círculo, e, neste momento, apenas a de M. Bakhtin, com a de G. Simmel, com vistas também a destacar os aspectos da obra bakhtiniana que ela permite aclarar. 

       Entre os trabalhos que têm sido importantes para as nossas reflexões, por examinarem as interlocuções e as bases filosóficas e teóricas do Círculo, destacamos os de C. Brandist (2002, em particular). Brandist traça um complexo e necessário quadro do contexto intelectual de produção das obras do Círculo; e, ao fazê-lo, de um lado, indica diferenças entre as perspectivas dos membros do Círculo, principalmente, entre Bakhtin, Volochínov e Medviédev, e, de outro lado, caracteriza a obra que é mais espaçada no tempo, a de Bakhtin, em diferentes de seus momentos. Em suas análises, Brandist não deixa de sublinhar a importância da obra de Bakhtin, mas também não deixa de marcar seus limites no que diz respeito, principalmente, ao seu potencial para explicar a sociedade em relação com suas bases econômicas. 

       O apurado trabalho de Brandist, que se pauta por desfazer homogeneizações realizadas pela recepção das obras, aponta as interlocuções e fontes – que, por vezes, caracteriza como incontornáveis – do Círculo com o idealismo, o neokantismo, a fenomenologia, a filosofia da vida, o marxismo, e com diferentes pensadores desses domínios filosóficos. Em vários momentos Brandist acentua as influências que Bakhtin, em especial, recebe dos neokantistas e cita G. Simmel, entre eles. O estudioso, no entanto, não deixa de destacar também que o cenário conturbado do início do século XX leva, na Alemanha, ao declínio do neokantismo, a uma inflexão da abstração neokantiana para investigações mais concretas, que convergiram na chamada filosofia da vida (Lebensphilosophie). E é, realmente, a repercussão desse domínio teórico que se reconhece mais facilmente na obra bakhtiniana. É também nesse contexto que se destaca a interlocução com Simmel, considerado um neokantista, mas que vincula suas reflexões à filosofia da vida e, com seus ensaios sobre as diferentes formas de “sociação”, entra para a história da sociologia como um de seus precursores (GOLDTHORPE, 1971; GIDDENS, 1971).

       Em uma nota de Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 1981: 22), Bakhtin (não tratamos, aqui, das referências que os outros membros do Círculo fazem a Simmel) menciona o trabalho de Simmel sobre Goethe, para referendar uma comparação que faz entre o escritor alemão e Dostoiévski. Já a referência explícita de Bakhtin à filosofia da vida em Para uma filosofia do ato responsável (BAKHTIN, 2010) leva V. Liapunov, em sua tradução da obra para o inglês, a abrir uma nota para explicar o termo, e nela destaca G. Simmel e H. Bergson, entre outros. É a Bergson, no entanto, que Bakhtin se refere ao mencionar a filosofia da vida, em Para uma filosofia do ato responsável, mas o faz para criticar o que considera, em sua obra, uma estetização da vida. Tal como está, poder-se-ia entender que a crítica de Bakhtin se estende também à filosofia da vida, como um todo, mesmo que saibamos que o rótulo agasalha um amplo e diversificado grupo de filósofos, a partir de F. Nietzsche. 

       Liapunov, na nota mencionada, cita R. Eisler para explicar o termo: “A corrente filosófica que define a realidade absoluta (Wirklichkeit) como ‘Vida’ ou que opõe a realidade viva irracional, que só pode ser alcançada por meio da experiência vivida (Erlebnis) ou por meio da intuição, àquele modo do Ser que foi formado pela cognição abstrata e analítico-intelectual” (EISLER, apud LIAPUNOV, 1993: 88-9). Trata-se de privilegiar a vida, a experiência vivida (“o ponto em que me encontro”), que estão justamente ausentes do pensamento abstrato, do “teoricismo”. 

       Para Gumbrecht (1998: 162) – já o citamos em Marchezan, 2015 –, o que caracteriza, e reúne, as diversas tendências dos pensadores filiados à filosofia da vida é a crítica ao paradigma sujeito/objeto. Separado do objeto, e, portanto, com distância que garante objetividade, verdade, o sujeito é o observador do mundo dos objetos, a quem cabe decifrá-lo. Em um polo, o sujeito que se concebe capaz da observação, no outro, o mundo, considerado legível. Com o conceito de vida, a filosofia ultrapassa essa barreira entre sujeito e objeto (LÉGER, 1989: 287): não há sujeito fora do mundo e não há acesso ao mundo fora da consciência humana. Está, assim, traçado, em especial, o domínio das ciências humanas. 

       Nessa perspectiva, a vida, conceito que, em Simmel, está presente também nas reflexões sobre a sociedade, é o lugar das interações, constantemente, feitas e refeitas entre sujeito/sujeito, sujeito/grupo, grupo/grupo (LEE; SILVER, 2012). Simmel identifica e explora essas mais diversas interações – desde as mais corriqueiras do cotidiano às mais formalizadas e estruturadas –, que explicam, por estarem ligadas uma a outra, tanto a cultura quanto a organização da sociedade. Nesse sentido, conforme destaca Giddens (1971), Simmel recusa considerar a sociedade uma realidade dotada de existência própria, situada externamente ao indivíduo, a seus atos nos diferentes círculos de que faz parte e com base nos quais atua; da mesma maneira que a personalidade, sua consciência moral, não pode ser compreendida fora das relações sociais, fora da convergência singular de círculos sociais (LEE; SILVER, 2012), que a condicionam. Mostram-se, aí, as relações interno/externo, indivíduo/sociedade, cultura subjetiva/cultura objetiva (SIMMEL, 2000), que aproximam, na obra de Simmel, psicologia e sociologia.

       Para Simmel, o mundo da cultura tende a se desenraizar do mundo da vida, em que é criado. Trata-se da “tragédia da cultura” (SIMMEL, 2000), expressão com que Simmel destaca a autonomização e o autoengendramento dos objetos culturais, que acabam por constituir um fim em si mesmos, ao se separar do sujeito, que os cria e a quem deveriam servir. Os estudiosos da obra de Simmel relacionam essa “tragédia da cultura” com a noção de alienação de Marx, ampliada para explicar a separação entre sujeito e objeto cultural. Em palavras do próprio Simmel, que poderiam mesmo ser aproveitadas pelos críticos dos desenvolvimentos culturais por vias das tecnologias contemporâneas: “[a] objetivação do conteúdo cultural é provocada pela especialização e cria um crescente alheamento entre o sujeito e seus produtos (...). Os objetos culturais cristalizam-se cada vez mais num mundo intercomunicado que tem cada vez menos contatos com a alma subjetiva e com sua vontade e seus sentimentos” (SIMMEL, apud MORAES F., 1983: 19).

       De modo semelhante, Bakhtin tece crítica ao teoricismo e trabalha com o conceito de refração, explora a interação indivíduo/sociedade, destaca o mundo concreto da vida, fundado nos centros valorativos do eu e do outro, localiza a criação cultural na dinâmica da vida social, expõe preocupação com a autonomização da cultura.

      Diferentemente de Simmel, no entanto, no desenvolvimento de suas reflexões, Bakhtin reconhece o papel central da linguagem e traduz suas contribuições em termos dialógicos. Também de maneira diversa, não assume o pensamento trágico de Simmel: encontra no ato responsável e dialógico do sujeito, enraizado no mundo concreto da vida, a resposta contra a autonomização da cultura, a fragmentação da vida (Simmel, 2012) e, certamente, o relativismo, que ronda a obra de Simmel. Bakhtin encontra na própria literatura, em especial, na prosa de Dostoiévski e Rabelais, o componente vivo da cultura, o auxílio para o entendimento do ato responsável. 

     A filosofia da vida de Simmel permite situar Bakhtin nos domínios filosóficos de sua época, além de adensar e aclarar termos e reflexões. Por exemplo, o par de noções autor-pessoa/autor-criador, que pode funcionar em abordagens literárias diversas, especifica-se, teoricamente, na relação com o mundo da vida e o mundo da cultura, respectivamente (tratamos disso em Marchezan, 2015). A distinção entre gêneros primários e gêneros secundários, muitas vezes, mal compreendida, mostra toda sua pertinência e coerência também na relação respectiva com o mundo da vida e o mundo da cultura; naquele, circulam os enunciados primários, criados pelos sujeitos que vivem o aqui/agora de suas existências singulares e finitas; neste, em suas diferentes esferas, criam-se e circulam os enunciados secundários, que, sistematizados em códigos próprios, se descolam da vida e transcendem a ela.

       Mesmo incluindo na obra bakhtiniana o projeto de diálogo, de Volochínov, com o marxismo, Tihanov (1998) constata que o que liga as reflexões iniciais de Bakhtin com as mais maduras é mesmo a preocupação da filosofia da vida com o mundo da vida e o mundo da cultura. É um caminho, portanto, para seguir a coerência do desenvolvimento da obra bakhtiniana.

 

REFERÊNCIAS

 BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

 BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

 BRANDIST, C. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. London: Pluto Press, 2002. 

 GIDDENS, A. Georg Simmel. IN: RAISON, T. (org.). Os precursores das ciências sociais. Trad. Luiz Corção. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971. p. 149-157.

 GOLDTHORPE, J. H. Introdução. IN: RAISON, T. (org.). Os precursores das ciências sociais. Trad. Luiz Corção. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971. p. 9-17.

 GUMBRECHT, H. U. Modernização dos sentidos. Trad. Lawrence F. Pereira. São Paulo: Editora 34, 1998.

 LEE, M.; SILVER, D. Simmel’s law of the individual and the ethics of the relational self. Theory, Culture &Society. December 2012 vol. 29 no. 7-8 124-145. Disponível em http://tcs.sagepub.com/content/29/7-8/124.full 

 LÉGER, F. La pensée de Georg Simmel: contribution à l’histoire des idées au début du XXe. siècle. Paris: Kimé, 1989.

 LIAPUNOV, V. Notes. In: BAKHTIN, M.M. Towards a Philosophy of the Act. Edited by Vadim Liapunov and Michael Holquist, translated with notes by Vadim Liapunov, UTPSS, ed. Michael Holquist, no. 10. Austin: University of Texas Press, 1993. p.77100.

 MARCHEZAN, R. C. A noção de autor na obra de M. Bakhtin e a partir dela. Bakhtiniana, São Paulo, 10 (3): 186-204, Set./Dez. 2015.

 MORAES F. E. Formalismo sociológico e a teoria do conflito. IN: SIMMEL, G. Georg Simmel: sociologia. Org. Evaristo de Moraes Filho; trad. Carlos A. Pavanelli et al. São Paulo: Ática, 1983.

 SIMMEL, G. The fragmentary character of life. Theory, Culture & Society. 29(7/8). 2012. Trad. Austin Harrington. p. 237–248.

 SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2006.

 SIMMEL, G. Simmel on Culture: selected writings. Edited by David Patrick Frisby and Mike Featherstone. London: Sage Publications, 2000.

 SIMMEL, G. Georg Simmel: sociologia. Org. Evaristo de Moraes Filho; trad. Carlos A. Pavanelli et al. São Paulo: Ática, 1983.

 TIHANOV, G. Vološinov, ideology, and language: the birth of Marxist sociology from the spirit of Lebensphilosophie. The South Atlantic Quarterly 97:3/4, Summer/Fall 1998. p. 599-621.