Maria Inês Batista Campos

Relações de valores: Bakhtin e as raízes filosóficas

 

Maria Inês Batista Campos (USP)

 

 

Mikhail Bakhtin foi considerado pelo filósofo slavista George Louis Kline um dos quatro filósofos mais importantes da Rússia do século XX. No início da década de 1920, ele produziu alguns ensaios filosóficos dedicados à arquitetônica do mundo real e da estética, não teorizado, mas “vivenciado” pela ótica do eu-para-mim, outro-para-mim e eu-para-outro. O princípio ético bakhtiniano está baseado nos modelos primários da relação do sujeito com o mundo.

Com o objetivo de aprofundar os fundamentos filosóficos do conceito de arquitetônica, me deterei em dois textos: “Para uma filosofia do ato responsável ” (1920-1924), um texto fundador, e “O problema do conteúdo, do material e da forma na obra literária” (1924). Esta apresentação é resultado parcial do Pós-Doutorado realizado na Université Paris 8, com apoio da Fapesp, sob a supervisão da professora Dra. Marília Amorim. Nos textos escolhidos, encontramos mudanças que surgem em poucos anos, demonstrando o quanto o Seminário Kantiano de Vitebsk (1920-1924) com M. Kagan, Pumpianski, Voloshinov e outros colegas foi importante para a elaboração das principais ideias filosóficas do jovem Bakhtin.

 

O conceito de arquitetônica em Para uma filosofia do ato responsável

O ensaio está organizado em três blocos e o último recebeu o subtítulo de “Primeira parte” em que traz os planos fundamentais do conceito de arquitetônica. Faraco sugere que essa parte tenha o subtítulo de “Arquitetônica do mundo vivido e do ato estético” (2010, p. 156).

Para esclarecer o que entende por arquitetônica, Bakhtin apresenta uma análise do poema lírico Razluka [A separação], de Alexander Pusckin à luz da arquitetônica. Partindo do poema, o filósofo oferece uma proposta teórico-metodológica para recuperar a arquitetônica lírica, considerando os momentos centrais do eu, do outro e do eu-para-o-outro, uma vez que a arte está mais próxima do ato do que da teoria abstrata. A análise explora a inter-relação da entonação e dos centros de valores, procurando associar cada acontecimento humano à participação dos heróis dentro de um contexto valorativo. O sentido da separação entre as personagens se constrói na fronteira entre a reação de dor do herói, a dor propriamente dita e a reação do autor frente a essa dor, recriada por ele.

Em seguida, apresenta “a arquitetônica real do mundo vivido da vida” (2010: p. 141) O foco é o homem localizado em um tempo e espaço concreto, assumindo sua responsabilidade diante do mundo real. A partir dessa concepção, ele finaliza o texto tratando do conhecimento das interações heterogêneas e complexas que são construídas em torno de um ser humano concreto, orientado no interior de um tempo e espaço no contexto axiológico.

 

O conceito de arquitetônica em O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária

 

        O texto foi escrito em 1923 durante a complexa crise política - morte de Lênin em janeiro de 1924 e ascensão de Stalin em 1927. Publicado cinquenta anos depois, em 1975, ano da morte de Bakhtin, na coletânea com outros trabalhos e recebeu o título Voprosy Literatury i Estetiki. Quando o livro apareceu na França em 1978, o ensaio foi lido na coletânea de teoria do romance e as fontes filosóficas ganharam pouco destaque. Para M. Dennes: “As influências filosóficas, em particular o kantismo, o neokantismo e a fenomenologia estão presentes neste texto a tal ponto que elas mostram os fundamentos teóricos a partir dos quais pode ser pensada a unidade da obra que virá » (DENNES, 1997, 82).

Um aspecto importante a ser considerado no ensaio O problema do conteúdo, do material e da forma na obra literária é ter sido escrito por completo no primeiro período das atividades bakhtinianas e ter começo e fim, o que traz um acabamento. Bakhtin escreveu este texto quando tinha acabado de regressar a Petrogrado e seu ponto de vista tinha mudado consideravelmente do que escrevera em O autor e o herói. Umas das causas dessa mudança tanto a nível de tema quanto de perspectiva foi a influência da fenomenologia husserliana, como assinala Dennes, por meio da interpretação e do uso que fizera dos estudos de G. Chpet (DENNES, 1998, 190).

Faraco sintetiza muito bem o objetivo do texto:  “[...] criticar o pensamento estético do formalismo russo (a que Bakhtin chama de estética material) e apresentar coordenadas básicas de uma estética geral sistemática (filosofia) a partir da qual se possa elaborar uma poética que supere a estreiteza da estética material” (FARACO: 2009, p.97).

Como o texto contribui para a compreensão do conceito de arquitetônica?

Ele está organizado em cinco partes Breve introdução; I História da arte e da estética em geral; II O problema do conteúdo; III O problema do material; IV O problema da forma. Bakhtin amplia a posição axiológica do autor-criador, e trata de incluir em seu conteúdo o herói e o mundo no qual ele vive, integrando reciprocamente a forma da composição e o material utilizado.

O filósofo valoriza os aspectos sociais, políticos, históricos e cognitivos que se tornam elementos internos (e não externos) de qualquer obra de arte por meio da construção do objeto estético. Assim, as práticas culturais são movimentadas pelas posições socioavaliativas nas múltiplas inter-relações responsivas. Todo ato cultural se articula dentro de um espaço axiológico intenso de inter-determinações responsivas. 

Bakhtin chega então a arquitetônica do objeto estético como uma proposta da atividade estética. Ele insiste que a não diferenciação do material e da organização do material acabam por confundir a forma arquitetônica e a forma composicional. Para chegar a essa distinção ele traz vários exemplos e destaco um deles: “O drama é uma forma composicional (diálogo, desmembramento em atos, etc.), mas o trágico e o cômico são formas arquitetônicas de realização” (BAKHTIN, 1998, p. 24).

Dennes sublinha que essa concepção de objeto estético é ainda neokantiana em alguns aspectos porque retoma o mundo do conhecimento e da ação. No entanto, Bakhtin amplia essa visão, afirmando que no domínio da cultura a obra de arte mantém relação com a experiência tanto teórica quanto prática (1997,86). Essa ideia lhe permite sublinhar a importância dos estudos linguísticos e sociológicos.

O objeto estético não perde suas especificidades formais, mas se mantém enraizado na história e na cultura, de onde retira seus sentidos e valores e os transpõe para um outro plano axiológico precisamente por meio da função estético-formal do autor-criador. Para tratar da correlação entre forma arquitetônica e forma composicional, Bakhtin oferece uma série outros exemplos em que o autor-criador pode organizar o conteúdo por diversas perspectivas: trágica, cômica, lírica, satírica, etc. e encontrará a organização da forma composicional (romance, conto, poesia lírica, drama, etc.) mais adequada à respectiva forma arquitetônica. Ao dar forma material ao conjunto, deverá, no caso da arte verbal, por exemplo, conquistar a linguagem, apropriar-se dela não como língua em si, mas com suas significações axiológicas enquanto um acontecimento.

Ao  chegar na última parte intitulada O problema da forma, Bakhtin insiste na ideia de que a forma não é algo que o autor simplesmente aplica ao material. E volta ao conceito de arquitetônica, mostrando a diferença com a forma composicional que ele considera do tipo simples. A forma arquitetônica engloba a forma composicional, mas tem o aspecto axiológico que significa a seleção do conteúdo e do material da obra assim como o estudo da técnica da forma empregada. É a proposta de análise da forma arquitetônica (Bakhtin, 1998, p.57).

Sem isolar o conteúdo da forma, como a forma se torna parte do conteúdo? A forma reflete uma posição avaliativa do autor-criador de modo que a expressão do ritmo, da entonação a tensão articulatória, a gesticulação interior, a atividade figurativa da metáfora (p, 59) são fatores ativos para a construção do objeto estético e não meros traços materiais. O conceito de arquitetônica envolve particularmente questões estéticas, éticas e valorativas com suas raízes fenomenológicas, le point de vue de Bakhtine se trouve modifié, et, par là-même, l’usage qu’il va faire de ses acquis philosophiques” (DENNES: 1997, p.84).

Para concluir, podemos dizer que o conceito de arquitetônica que circula em Para uma filosofia do ato responsável é uma primeira reflexão de Bakhtin, importante, mas marcada pelas bases neokantianas e pela análise que teve como referência o poema lírico de Puschin. Já em O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária, o eixo se modifica tanto nas bases filosóficas como nos exemplos. Ele parte do diálogo com a teoria literária russa e as teorias formalistas. Ele procura investigar o objeto estético, mas nas inserindo-o no seu eixo axiológico, impregnado da vida, da dor, do sofrimento humano, da realidade. É indispensável, desse modo, o peso histórico, social, político, para que o artista possa avaliar a realidade, selecionar, enriquecê-la em vários domínios da arte. Neste texto há exemplos da pintura, escultura, música e literatura.

Em resumo, a arquitetônica é um projeto conceitual que articula a simultaneidade de pontos de vista internos e de valores axiológicos (éticos estéticos e morais). O objeto se constrói no tempo e no espaço pela singularidade do sujeito único, ao mesmo tempo comprometido com seu tempo social e ideologicamente posicionado. Portanto, no espaço das relações dialógicas que a arquitetônica constrói o seu objeto histórico e lhe confere sentido ideológico e valorativo.

 

Referências

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